segunda-feira, 18 de junho de 2007

Valsa Brasileira

(Certas canções fazem bem pra alma)

Vivia a te buscar
porque pensando em ti corria contra o tempo
Eu descartava os dias em que não te vi
como de um filme a ação que não valeu
Rodava as horas pra trás, roubava um pouquinho
E ajeitava o meu caminho pra encostar no teu
Subia na montanha não como anda um corpo
Mas um sentimento
Eu surpreendia o sol antes do sol raiar
Saltava as noites sem me refazer
E pela porta de trás da casa vazia
Eu ingressaria e te veria confusa por me ver
Chegando assim mil dias antes de te conhecer
(Edu Lobo e Chico Buarque)

sexta-feira, 1 de junho de 2007

Ensaio sobre a lógica da dor

Se doer, respire fundo. Carregue
a dor para longe do mundo.Feche
a porta, apague a luz. Feche
os olhos e desespere
em solidão até vê-la
partindo inteira.Quando ela vai
fica um vazio e por isso levante-se
e volte pro mundo, a procura
de uma nova dor.

Mas se for dor daquelas que quebra,
Derruba, estraçalha;
Nesse caso, levante-se primeiro.
Encare o mundo.
Recolha os pedaços pois são todos seus.
Só então feche a porta mas, com as luzes acesas
E os olhos abertos,
Reúna os pedaços, reconstrua, reconstrua-se,
Ainda que as emendas fiquem visíveis.
Só então desespere, moderadamente, entretanto,
Porque essa dor, não vai embora.
Não trará vazio nem procura.
Doerá aguda em cada marca.
Reabrirá, todo dia, cada cicatriz.
E tornaremos a fechá-las.
Lutaremos contra ela, incansáveis.
Fiéis inimigos, recontruiremos nossa fé.
Ela não vencerá nem será vencida,
Mas incorporada ao que somos nós.
Deixará de ser dor, tornar-se-á qualquer coisa
de tristeza profunda, escondida.
E seguiremos com ela,tolerantes, compreensivos,
Aguardando, porém, o momento perfeito para abandoná-la
Perdida em um canto qualquer, anulada de existência.
Seremos, agora, amigos, grandes amigos...

Absolutamente infiéis.

Abstrações de binóculo

E, como já queria supor, o medo se apresenta em sua face oculta, lua azul, redesenhando o que há de sonho ou realidade onírica. Era aguardada sua chegada, talvez não pra já, talvez não pra ontem, talvez não assim apresentado em suspensão, com tanta classe. Medo propondo brincadeira; não fará a brincadeira; já está a brincar, eu sei, eu vejo, não sinto porque não quero.Peculiaridade tragicômica controlar o sentir e não deter a razão. Nada culpo senão a mim. Entendo tudo, entendo tanto, mas pouco tem me servido tamanha compreensão se a dor é a mesma, implacável em sua duração centesimal. Recentemente adquiri um hábito bastante infeliz de prever a dor a ser doída, talvez apenas algo Fernando Pessoa: ser fingidor; "só as que ele não tem", as que ela não tem, ela não tem dor alguma, mas precisa um pouco delas. Talvez ela não sinta dor porque nada sente que seja real, e se seu coração for só fantoche da razão? E se ela for invenção de si mesma? Ora, todos somos nossas invenções, mas e se ela acreditava não ser e é? E se ela acreditava realmente existir? E o Medo? Ela também pensava que ele era bom, mas quem disse que não é? E os olhos profundos, infinitos? Mas porque o silêncio na despedida? Seria a certeza da volta ou da partida? Estaria ele levando o que de sua alma tinha deixado com ela ou apenas indo até ali pra voltar logo? Aliás, será que isso importa? Importa pra quem? Por que tentar entender quando os olhos são profundos? Acredito em Leminski, o olhar é longo quando não estamos pelo avesso, o olhar era eterno, eu sei, ela me contou, então era o lado direito, só podia ser. Ela acreditava nele porque sentia, não pensava.E se ela fosse ( o que de certo é) diferente de mim e fosse o coração incontrolável manipulador da mente? E se o Medo tivesse outro nome? E se ele estiver voltando, se só foi até ali resolver alguma coisinha em sua vida inteira e bastou virar as costas para ela se pôr a duvidar de tudo? Não culparia o Medo se ele nunca mais quisesse voltar diante de tamanha desconfiança, não culpo o Medo nunca. Também não culpo a ela. Nada culpo senão a mim.

Verborragia cotidiana em um tranquilo domingo caótico

Manhã de domingo. Lá fora, todo frio de São Paulo. Correr? Agora? Afundo ainda mais no edredon. Boa sorte. Viro pro lado, mas é tarde pra tentar dormir de novo, meu talento especial pra encontrar objetos perdidos (ou apenas guardados) é solicitado. Meu marido parte pra corrida, eu parto para um café, sem leite e sem açúcar, aliás, sem pão e sem graça, carboidrato só na terça, maldita dieta. Vou pra sala, ligo o computador, Graciliano Ramos. Eu já sei um pouco sobre ele e suas Vidas Secas, e também fascina-me a cachorrinha Baleia, mas meu aluno ainda não, então vamos lá.Uma página, uma única página, milhares de idéias e uma mísera página, mas quem disse que elas querem vir pro mundo? Ligo a TV, desligo a TV, ligo e desligo o som, passa-se um par de horas... nada. Pior que não saber o que escrever é não conseguir escrever o que se sabe. Resolvo dar um tempo e respeitar o timing das minhas idéias. Lavo a louça do café, arrumo a cama... concluo que o melhor é começar de novo. Tudo muda após um banho escaldante. Espelho, engordei, um único deslize nessa dieta insana... devia ter ido correr. Olho o shampoo da promoção, meu cabelo nunca foi muito amigo de produtos promocionais, mas há momentos em que é melhor aceitar o caro barato do que comprar a briga, só hoje, mais tarde resolvo. Vou ao espelho e vejo meus olhos ainda inchados pela noite longa de sono profundo e idéias oníricas e barulhentas, não importa, lentes de contato. Decido deixar de lado o moletom confortável e opto por algo menos macio, talvez o conforto da roupa contribua para que as idéias não saiam pro mundo. Encontro a roupa menos confortável, está amassada. Será que Levi Strauss passava suas roupas antes de ir pro caldeirão? Descubro que a roupa menos confortável que já não está mais amassada está larga, a dieta está funcionando. Meu cabelo... em meia hora verei os efeitos do shampoo promocional. Agora, outro café e Graciliano... mas meu marido chega com vídeo clipes bizarros, We’re the world e as vidas secas esperam de novo. Fim, voltemos ao realismo.
Volto ao computador, pego meu café, ligo o som, e começo de novo. Penso em tantas coisas ainda, que é difícil me concentrar na cachorra de Fabiano, só uma página, já escrevi dezenas sobre isso, por que uma está sendo tão difícil? E ainda tem a Alice, o Gato, o Chapeleiro... as idéias estavam prontas mas se perdiam na ponta dos dedos. Vamos almoçar, não é que todo mundo teve a mesma idéia? Prometo pra mim mesma nunca mais pisar em uma praça de alimentação de shopping center, mas ontem disse a mesma coisa e cá estamos nós: eu,meu grelhado e minha salada sem crouton procurando uma mesa. Mais um café e invento querer um vestido daqueles que só existem na minha imaginação e meu marido adora porque sabe que não encontrarei nesse mundo. Vou embora sem o vestido. Supermercado, a melhor opção possível vem da terra de seu George, abstraio de questões da política externa e sigo as compras. De volta pra casa e pra Graciliano, agora não tem mais jeito. Ouço apresentadores dominicais na TV, demais pra mim, mudo de lugar, respiro e consigo algo, desorganizado, mas ali está, amanhã ajeito. Missão quase cumprida. Agora só preciso esperar ansiosamente o fim do domingo, há tanto a ser feito, dito, escutado na segunda-feira. Espirro essa crônica pela ponta dos dedos e penso em dormir, amanhã ajeito essa também, penso em mais um punhado de coisas que não consigo silenciar e sei que vou dormir pensando, acordar pensando, sei que amanhã é outro dia ... e ainda estarei pensando.

Eram lá percalços seus...

Quinta-feira, 08 de março de 2007. Dia Internacional da Mulher. Data de comemorações extremamente discutíveis no que toca a tão clamada igualdade entre os sexos. Data também da visita do ilustríssimo presidente norte- americano George W. Bush a terras tupiniquins, ou tupinambás, ou qualquer outra denominação aleatória derivada do tronco tupi (1).
Mas o que me leva a escrever neste dia de tanta algazarra política, social, cultural, ambiental (vide Greenpeace no monumento do Ibirapuera) tem um fundo muito mais humano e muito menos humanitário, palavra da moda.
Egoísta e comodamente instalada em meu pequeno mundo paralelo, um tanto Exupéry, observo toda essa agitação, inconcebível para minha alma de poeta, e pego-me pensando no exímio talento do ser humano de culpar outros por seus percalços. Sim, eu também inflo a massa das vítimas em potencial. Hoje mesmo, ao demorar 80 minutos para chegar a universidade, presa no trânsito já sabidamente caótico da “megalópole frenética”(2) culpei o tal chefe de estado, e também o nosso e todos os outros por serem chefes de estado, culpei motoristas de viaturas policiais, culpei os que culpavam o presidente ianque e os que nem sabiam dele, culpei as mulheres desse tal dia internacional, culpei aquelas que queimaram soutiens e obrigavam-me hoje a não estar em casa cozinhando, mas no trânsito correndo atrás de meu lugar ao sol, horas mais tarde vim a saber por um amigo que mulheres grávida também tiveram culpa, culpei burgueses e flagelados, afinal, tive bastante tempo pra isso. Em dado momento, quando o trânsito andou e o vento me fez despertar de meu surto dêitico (aproveitemos São Paulo, abençoado lugar onde, com uma boa dose de sorte, ainda podemos andar de vidros abertos em 5 ou 6 vias rápidas) constatei que, sabendo da possibilidade de algum caos, eu mesma poderia hoje ter-me antecipado na saída assegurando minha pontualidade. Mas claro que ao justificar o atraso, larguei mão do “mea culpa” e culpei todos os supostos culpados e quantos não estariam nessa hora culpando a mim, de forma mais ou menos abrangente, por algum motivo?
Humanos: se sofremos por um amor que, por mais que tenhamos insistido, não nos quis, a culpa não é nossa que não demos paz nem pra nós mesmos , nem pra pobre criatura, mas sim do ser ingrato que nos feriu tão profundamente.
Uma queda profissional dificilmente é motivada por nossa própria incompetência ou descaso e, sim, por aquele chefe ou colega fascínora.
Exemplos comuns que há aos baldes em qualquer canto de nossa vida e existirão sempre, como se fosse uma reação inerente a espécie humana. Nós todos, continuaremos culpando muitos e sendo culpados por outros tantos por motivos muitas vezes desconhecidos pelos algozes mas que poderiam ser complicadíssimos para a vítima, não fosse ela uma pobre vítima.
Culpar segue sendo uma boa desculpa.

(1) referência aos ensinamentos do mestre Eduardo de Almeida Navarro. Em tempo: mestre, aqui, não é título, é admiração; ele é livre-docente.
(2)expressão encontrada em Leonardo Leon, poeta neo-beatnik, cuja literatura chegou a mim na adolescência pelas mão de Patrícia Tavares, hoje historiadora ou cientista social, não sei ao certo.

sexta-feira, 18 de maio de 2007

P.S.

Descobri que Billie Holiday acalma o silêncio.

Poetas de um mundo caduco

Há momentos em que simplesmente não existem palavras. Não que não as encontremos, elas não existem complexas o suficiente para descrever o que sentimos. Talvez seja essa mais uma das inúmeras funções da linguagem: permitir que sintamos até certo ponto, até onde as palavras consigam chegar. Mas e quanto aos que teimam ser poetas ou, mais que isso, teimam ter alma de poeta? Desses, a tal linguagem não dá conta. Deles, ela é amante, a eles, se doa inteira. Assim, brincam com ela, trapaceiam-na, tomam um milhão de palavras para descrever um minuto e uma única para toda a vida, dão voltas no tempo, dão voltas neles mesmos, por luxo, prazer ou por aversão ao caminho mais curto. Dos que tem poesia na alma, poesia transborda, toma-nos de assalto, invade e faz chorar.

quarta-feira, 16 de maio de 2007

Deleuze para Aquino

Preciso de férias em Paris. Preciso ir a Paris porque sou livre para não ir a Paris, ir a Paris porque é necessário ir a Paris é para os tolos que imaginam que precisam ir a Paris. Não preciso de Paris, aliás, que bobagem Paris! Mas eu vou a Paris, não para dizer que eu já fui a Paris, não, vou porque sou independente, moderna, bela e criativa, como Paris. Lá há luz e todos são livres, eu sou livre para não ir a Paris por isso, e só por isso, preciso ir a Paris.

Física - humana, poética - Exata

Tudo o que nos cerca depende de um referencial.Talvez a Física, ciência exata, seja a mais humana delas. Ou o reflexo do ser humano seja exato.Cada sensação que podemos ter sobre o mundo, depende do que vemos em nós mesmos. Fenômenos da Óptica na vida cotidiana. Meios turvos ou translúcidos. Convergências, divergências...Toda a lógica do mundo se encaixa no que há de humano, como a realidade se funde ao sonho compondo projeções oníricas da vida. Os dias de sol ou chuva, são realtivamente belos e depressivos, dependem do que nós somos em cada momento.Momento... novamente o tempo, esse caso sério... espero conseguir compreendê-lo algum dia, espero que ele me entenda... na verdade não espero, pois ele passa e eu acabo não percebendo e o perco, pois esse cavalheiro nunca volta.
Aliás, dois ilustres cavalheiros compuseram, Aldir Blanc e Cristóvão Bastos, e a voz de Nana, que além de mulher tem o sobrenome Caymmi, eternizou. É isso aí, meu Senhor....

Resposta ao Tempo

Batidas na porta da frente é o tempo
Eu bebo um pouquinho pra ter argumento
Mas fico sem jeito, calado, ele ri
Ele zomba do quanto eu chorei
Porque sabe passar e eu não sei
Um dia azul de verão, sinto o vento
Há folhas no meu coração é o tempo
Recordo um amor que perdi, ele ri
Diz que somos iguais, se eu notei
Pois não sabe ficar e eu também não sei
E gira em volta de mim, sussurra que apaga os caminhos
Que amores terminam no escuro sozinhos
Respondo que ele aprisiona, eu liberto
Que ele adormece as paixões, eu desperto
E o tempo se rói com inveja de mim
Me vigia querendo aprender
Como eu morro de amor pra tentar reviver
No fundo é uma eterna criança que não soube amadurecer
Eu posso, ele não vai poder me esquecer

(mar/2006)

Solicito audiência com o Senhor do Tempo

É interessante notar a infinidade de coisas que podem acontecer em um vago instante. Poucos minutos são suficientes pra mudar uma vida, uma história. Foi assim com toda a humanidade em todos os tempo, é assim conosco. O ser humano nunca mudou. Já pararam pra se perguntar por quê estavam naquele lugar, aquela hora, e aquela pessoa também estava? Ou por quê viram (ou não viram) determinada cena? É estranho e mágico o ciclo da vida, a conspiração do universo pra que encontros, desencontros, reencontros ocorram como deve ser. E, usando palavras que ouvi de alguém, no final tudo dá certo, se não deu certo é porque não teminou. Mal entendidos são explicados, nós na garganta desfeitos e assim segue o mundo, em terreno acidentado.Inesperadamente o passado, sempre presente, mostra que o futuro é a sequência clara do que fomos antes... O fato é que todos os tempos são abstratos. E se unem de modo único e maior. O que é agora, só existe pois houve antes e haverá depois. Toda nossa vida é uma rede impossível de ser desfeita. Todas as pessoas e todos os momentos que vivemos são responsáveis por nosso presente, logo são também responsáveis pelo que virá depois. Tempo... esse ser insano. Gostaria de qualquer dia sentar e ter uma conversa com este Senhor. Entender melhor como ele passa e parece que não passa, ou não passa e parece voar ( voar?). É... alguém mais complexo e inexplicável que eu, o Sr. Tempo. Por hora não quero entender, vou esperar que ele me explique. Por isso mantenho e sigo minha teoria bélico-amorosa, o único tempo que podemos controlar é o presente, que já é passado quando pensamos sobre ele. Talvez a idéia seja não pensar no agora e vivê-lo, pois pensar agora é pensar antes e desfazer o que virá depois. O futuro é belo pois é vago, imprevisível. E não adianta tentar controlá-lo, o futuro é egocêntrico. Agora, não agora, agora, ou em qualquer agora que surja repentinamente como agora, esqueça antes ou depois que o agora se encarrega deles, é só isso que temos: agora. A vida não espera, a felicidade não espera, os sonhos são concretizados sem aviso prévio, agora.... vai!!!!!!!!!!

(mar/2006)

Muito prazer, sou humana

De repente, tudo se torna inerte. Não há paixão, não há conflito, não há remorso. Não, mas não foi de repente, veio aos poucos, numa cadência discretamente triste, samba-canção, bossa-nova, ritmando meu coração e meus passos. Despertando minha face melancólica.Quis aniquilar a dor como sempre fiz, mas não achei comprimido pra dor na alma.Tentei disfarçar, esquecer, decidi seguir com um sorriso no rosto e a força que nunca tive, enquanto dentro de mim surgia um enorme vazio.Também nada se tornou, sempre foi inerte, sempre foi igual. O erro foi meu por buscar sempre a beleza.Talvez toda emoção que pensei ter havido, tenha sido só minha,.Quem sabe nada do que sonhei possa existir.Quem sou eu?Matéria e espírito, é só o que sei.Houve o tempo em que eu sabia quem era, que era forte, capaz,amada, sentia-me plena, meu amor e meu ser bastavam no universo.Hoje nada mais é claro. Penso em mim, numa imagem turva, nebulosa. Talvez não seja capaz, talvez não seja amada, ou talvez tenha entendido tudo errado, desde o começo.Da força,ainda fica um pouco,por isso tento buscar a mim em meio a apavorante multidão de sãos. Seis da manhã, será que é verdade?Ou tudo é culpa do tempo equivocado?Queria passar dias dormindo, protegida, em seus braços.Queria passar horas me vendo em seus olhos, lindos.Queria recordar quem sou, quem é, descobrir quem somos, juntos.Quero passar a vida tentando compreender seu amor.
"As sete letras de Pralini (Spinola/Gueller) davam-lhe força.As seis letras de Ângela (Sílvia) tornavam-na anônima" C.L.

Muito prazer,
Sílvia Spinola Gueller

P.S. Esse texto foi o primeiro publicado em meu antigo blog, não sei se ainda é verdade inteiramente, também não sei se é mentira, mas creio que hoje voltei a ser forte.

Foucault para Aquino

O homem-arquipélago segue confiante de sua importante posição no mundo. O homem-arquipélago se pensa senhor de si, é grande, forte, saudável, bem-educado, cordial, sociável. O homem-arquipélago compartilha com os outros homens-arquipélagos, iguais a ele como um reflexo num raso espelho d’água, os prazeres de sua vida tão plena que os conduzirá a uma velhice tão feliz! Serão velhinhos de rostos simpáticos e corpos ainda fortes, velhinhos bonitos, sem duras marcas do tempo e das lembranças de uma vida de conflitos com a alma e o mundo, terão memórias doces, longas e tão felizes!
Ao cair da noite, cada homem arquipélago fechado em sua suíte numa residência para saudáveis arquipélagos na “melhor idade”, com quadra de tênis e campo de golfe, fecham os olhos vazios e partem silenciosamente, sem afetar a ordem.

Ode à megalópole

Véspera de feriado, final de expediente, meu marido liga transmitindo o convite de um amigo pra uma cerveja. Eu já estou em casa, lá fora o frio absurdo que quando São Paulo quer, São Paulo tem. Jabaquara... atravessar a cidade por uma cerveja... penso que posso pegar uma em minha geladeira e poupar-me do frio, do trânsito, da conta... é, a cidade nos leva a pensamentos egoístas, isolantes. Aceito o convite. Encontro meu marido e descubro que além da cerveja tem também um karaokê. Puxa... depois de ter passado a vida toda batendo o Hanon em cima de um piano, estudando solfejos, teorias, escalas dissonantes nas aulas de canto lírico, isso faz uma parte de mim ter vontade de voltar, mas por outro lado, os karaokês foram a maior forma de socialização do sonho de ser artista. Ora, eu apesar dos anos de estudo, não sou artista, e posso muito bem, como todos os outros cidadãos com mais ou menos cultura musical, pegar um microfone e virar “popstar” seguindo a letra que aparece em uma televisão. Poucos minutos, sim, mas pouco importa o tempo, importa o fato. Penso nisso e sigo adiante. Toca o telefone – celulares, maldição das últimas décadas – uma amiga, convido-a para vir conosco, mas ela está cansada. Eu estou cansada, meu marido está cansado, todos os nossos amigos estão cansados: a cidade está cansada, por isso não anda, com suas artérias entupidas por carros, ônibus, pressa e tédio, então não chegamos. Podemos ligar o rádio e cantar, mas aí a platéia é restrita e a cerveja... agora até a da minha geladeira está distante. Meu marido dirige, já embalado pela cerveja da happy hour (happy hour, mais um fruto cosmopolita; nas pequenas cidades talvez não encontremos uma happy hour, será que é porque lá todas as horas são felizes?) ele dirige e tudo o estressa, ele sempre dirige e sempre se estressa, e sabe disso. Penso em cavar uma discussão e voltar pra casa, a geladeira e a cerveja ainda estão lá, mas lembro das cervejas marcadas com velhos e novos amigos, que ficaram pra depois por algum motivo, a desculpa, minha ou deles, é sempre a vida, a falta de tempo, ou a cidade, por vezes não são desculpas, são fatos, mas nunca saberemos se são ou não verdade, então não falo nada, seguimos em frente, na verdade continuamos parados como tantos outros carros. Penso nos velhos amigos, onde será a cerveja deles hoje? Pra onde a vida os terá levado?