terça-feira, 29 de julho de 2008

Fixação púrpura

Hoje, preparando o jantar, imersa em pensamentos gastro-literários, encontrei uma personagem que me levou a indagar qual fora o mote cantado aos deuses, em sua forma una ou plural, no momento da criação do mundo. Lá estava ele, espantando-se com minha pueril atenção dispensada a beleza tão cotidianamente esquecida. Lá estava ele, do cerne de sua púrpura existência, envaidecendo-se com o olhar de desejo da jovem dona de casa de avental vermelho. Lá estava ele, empalidecendo diante dos movimentos ameaçadores daquela mulher, que queria parti-lo, aquecê-lo, degluti-lo. Lá estava ele, feito em tantos pedaços, que não mais sabia se fora algo antes de cair no agudo fio daquela navalha em unhas vermelhas. Lá estava ele, afogado nas angústias dela, mergulhado em um calor desconhecido de seus genes antociânicos. Lá esteva ele, vendo seu sangue azul escorrer por aqueles longos dedos de mulher. Lá estava ele, partido, entregue a seus caprichos apimentados. Lá estava ele, exposto ao paladar de outros. Lá estava ele, observando o prazer nos olhos dela. Lá estava ele, repolho roxo, tão belo a meus olhos de poeta que, seguindo a lógica do socialismo biológico, não poderia, de fato, ser aprazível a meu fino paladar linguístico.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

A complexa explanação do óbvio

Daria meu reino por saber como traduzir a infinitude de pensamentos que há dentro de mim. Trocaria alguns de meus dias para compreender o que faz o sangue correr em minhas veias, o que instiga as sinapses entre meus dendritos e axônios . Premiaria com três noites no Hôtel Costes qualquer um que pudesse explicar porque o amor teve de ser tão grande e estrondoso. Ressuscitaria Billie Holliday e Dolores Duran para uma profunda conversa sobre os sentidos da dor, regada a whisky sob a aura de fumaça das divas. Convidaria Mr. Hancock e seu chegado, Mr. Gautama, para uma simpática conversa descompromissada sobre seus ofícios. Ficaria só com você ouvindo o mar e contando estrelas às 10 da manhã. Ficaria só por você. Mergulharia em uma multidão para encontrá-lo entre tantos, encontrar-lhe-ia, entretanto. Deixaria de ver pela lembrança de seu olhar. Viveria surda para todos os sons, por ouvir infinitamente sua voz em meu ouvido. Juntaria James Brown e Jorge Ben sem o Jor para nos fazer dançar. Traria Vinicius para me ensinar só a pensar e sentir, sem tentar entender, deixando à poesia as palavras. Dançaria salsa em Cuba para causar-lhe ciúmes. Correria o Central Park de Manolo com solas virgens para dizer que o amo por todos os cantos de Manhattan. Ofereceria a você, mil vezes, o verde mar do Embaú, mais belo que todo o Pacífico. O ápice do Embaú de altitude, seria o ponto de partida para nossos sonhos. Seriam suas todas as minhas idéias e desejos, ouviria cada um dos seus, permitiria, porém, sempre que seus olhos pedissem, que a casa se enchesse de nosso silêncio cúmplice. Far-lhe-ia entender que só poderia ser por mim seu primeiro sorriso sob o sol e o noturno peso de seus olhos. Seus sonhos serão sempre meus. Meus sonhos serão sempre seus. Somos nós, é você, sou eu.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Special thanks to myself

Tudo acontece porque estou aqui e é essa pessoa que gosto de ser. As idéias existiram sempre, estavam apenas guardadas, sem razão para vir ao mundo, a doce lembrança do que gosto de ser fez com que as resgatasse e as trouxesse à luz, algumas delas ao menos; outras, ainda prematuras, continuam na gaveta - era mais romântica a época em que escritores de gaveta realmente as utilizavam- e outras tantas, talvez já prontas, correm aí pelo mundo querendo ser encontradas. Todos os dias, relembro a lição que certa manhã recebi de mim, como a pessoa que gosto de ser, e concentro-me em pensar sem vírgulas, o resultado é estrondoso, embora exija um certo controle de foco ainda a ser aprimorado. Todos os dias, busco idéias no infinito, soluções no cotidiano. Entretanto, nem todos os dias são fáceis e as soluções, muitas vezes, pulverizam-se e não as enxergamos. Aprendi sobre mim que tenho falhas a corrigir, mas estas aliam-se a grandes qualidades que aprecio e reconheço: sou divinamente humana. Gosto de olhar no espelho e descobrir-me como sou. Declaro meu amor a mim, à pessoa que gosto de ser, e é a ela, à pessoa que gosto de ser, que devo toda a minha inspiração.

Provocações pós- modernas

“Narcisismo: forma inédita de apatia
feita da sensação epidérmica ao mundo e, ao mesmo tempo,
de indiferença profunda em relação a ele.” ( G. Lipovetsky)


Quarta-feira, dezenove horas. Ela salva seus arquivos, repassa a agenda, desliga o computador, sai em direção ao elevador, uma parada no toalete, confere sua aparência no espelho: sim, estava bem, aquele modelo de saia cai sempre bem em seu corpo. Despede-se de algumas pessoas sem nome. Chegando à garagem, entra em seu carro, ajeita o espelho, mais uma olhada em sua imagem, liga o rádio e parte para o trânsito. Em meio a uma multidão de veículos, ela é uma notável anônima, como tantas outras vidas tão importantes que cruzam a sua na via expressa.
O celular toca, ela ativa o viva-voz, entende o risco de dirigir segurando o telefone, havia marcado o jantar com uma velha amiga, conheceram-se na faculdade, ambas com sólidas aspirações profissionais, porém também mulheres, bonitas, cultas, sensíveis, tornarem-se amigas, afinal, era dificílimo encontrar pessoas com tantas qualidades, deveriam ter jantado juntas na segunda, mas ela teve uma reunião, remarcaram para hoje, entretanto, agora é a velha amiga quem está presa em um projeto enorme. Não havia problema algum, marcariam para outro dia, próxima semana, sabia que aos fins de semana a velha amiga tinha os filhos, o casamento, ela ficaria torcendo para que tudo desse certo.
Seguir para casa. Teria de providenciar algo para jantar, avisara a empregada que não jantaria em casa. Ela ainda lembra que em um passado não muito distante, adorava chegar em casa após o trabalho e cozinhar para o marido, mas agora ele não estava mais lá, recebera uma proposta irrecusável de trabalho no exterior, ela não podia abrir mão de sua carreira promissora: ficou, ele partiu. Não faria sentido ambos distantes e sozinhos, veriam outras pessoas, até o divórcio, pensariam. Ela ainda gostava muito de culinária, mas era triste cozinhar para ninguém, até porque ela era uma profissional bem conceituada, bem remunerada, poderia admirar a culinária dos melhores restaurantes do mundo, não havia razão alguma para pensar em ficar com cheiro de cebola nas mãos para fazer o jantar para a família todos os dias. Aliás, a família implicaria filhos, filhos implicariam seu corpo deformado, gordo, cheio de marcas, depois nunca mais haveria privacidade, individualidade, a vida dela jamais seria só dela, teria de dividir amor, espaço, alegria. Não, ela era uma executiva de sucesso, não havia espaço para tais banalidades em sua vida.
Pára o carro diante do belo edifício, o carro é identificado, abre-se o portão. Há mais pessoas aguardando o elevador, ela diz boa noite: não os conhece, não a conhecem. Em seu confortável e silencioso apartamento, um banho demorado, após um dia produtivo de trabalho. Comida japonesa delivery, uma taça de vinho, um pouco de televisão,música, um bom livro, uma olhada na agenda do dia seguinte: absolutamente repleta de reuniões importantíssimas entre as 10 e as 19, o restante do tempo, preenchido por compromissos inventados e pintados como imprescindíveis, ainda sobrando no final da noite, quando as luzes do mundo começam a se apagar e as resoluções importantes não tem cabimento, tempo para uma profunda solidão infinita, plena de si mesma.

Grey shoes

Quero um par de sapatos cinzas para o dia de meus anos. Preciso de sapatos cinzas que combinem com o belo vestido que ganhei de minha mãe. Ele me acompanha a busca dos sapatos cinzas. Encontraremos todos os nossos amigos em um lugar interessante e divertido. Meus pais também vão. Gostaria de organizar um jantar regado a vinho branco para eles todos, mas ficaria mais complicado, dinheiro, desordem, não teremos tempo, o bar é mais prático. Concordo , mas quero um par de sapatos. Ele vai comigo. Penso que, talvez, seja isso o casamento. Ele não quer efetivamente passar uma bela tarde de sol em um feriado procurando sapatos, menos ainda sapatos cinzas, menos ainda sabendo que, para combinar com o vestido estranho que minha mãe me deu, há um par de sapatos roxos em meu armário onde não cabe mais nenhum par de sapatos. Ele sabe disso porque eu disse que havia sapatos roxos, outra cor pouco ortodoxa para sapatos, eu jamais reclamei a falta de espaço em meu armário.Ele tem sapatos pretos, marrons e beges, uns dez pares, usa quatro, os outros estão meio ralados, entendo a incompreensão de minha necessidade de sapatos cinzas, roxos, verdes, prateados, dourados, amarelos, vermelhos, envernizados, muitos dos quais possivelmente serão usados apenas uma vez. Mas ele vai comigo. Procura os sapatos que não existem no mundo real, como tudo o que eu busco. Ele está a meu lado. Seria isso o amor? Gastar seu dia procurando algo de que você não precisa e sabe que, efetivamente, o outro também não precisa e, correndo de encontro ao pensamento minimamente racional, sabe que há uma chance em mil de encontrar? Sei que a paixão não é isso. Apaixonados, nunca pensamos que não precisamos do que o outro quer, muito menos achamos que não é estritamente necessário a ele. Apaixonados, acreditamos que tudo o que o outro pensa ou deseja é pleno, irretocável e indiscutível. Ele já pensou assim, já agiu assim, já foi apaixonado, apenas. O amor é diferente. Amando, conseguimos aceitar as atitudes e decisões do outro mesmo que discordemos delas. Conseguimos participar das coisas importantes para o outro, mesmo que aquilo nada signifique para nós e, mesmo distantes, partilhamos nossos mundos. Quando amamos, desgostamos de infinitas coisas e, ainda assim, entendemos. Por amor, passamos tardes buscando sapatos cinzas e uma eternidade desejando as melhores coisas do mundo a ele, a mim. E fazemos nosso os nossos sonhos, dedicamos a ele, nossos projetos. Aceitamos, acreditamos e lutamos por doses de felicidade, ao menos diárias. Por todos os dias de nossa vida.