sexta-feira, 1 de junho de 2007

Ensaio sobre a lógica da dor

Se doer, respire fundo. Carregue
a dor para longe do mundo.Feche
a porta, apague a luz. Feche
os olhos e desespere
em solidão até vê-la
partindo inteira.Quando ela vai
fica um vazio e por isso levante-se
e volte pro mundo, a procura
de uma nova dor.

Mas se for dor daquelas que quebra,
Derruba, estraçalha;
Nesse caso, levante-se primeiro.
Encare o mundo.
Recolha os pedaços pois são todos seus.
Só então feche a porta mas, com as luzes acesas
E os olhos abertos,
Reúna os pedaços, reconstrua, reconstrua-se,
Ainda que as emendas fiquem visíveis.
Só então desespere, moderadamente, entretanto,
Porque essa dor, não vai embora.
Não trará vazio nem procura.
Doerá aguda em cada marca.
Reabrirá, todo dia, cada cicatriz.
E tornaremos a fechá-las.
Lutaremos contra ela, incansáveis.
Fiéis inimigos, recontruiremos nossa fé.
Ela não vencerá nem será vencida,
Mas incorporada ao que somos nós.
Deixará de ser dor, tornar-se-á qualquer coisa
de tristeza profunda, escondida.
E seguiremos com ela,tolerantes, compreensivos,
Aguardando, porém, o momento perfeito para abandoná-la
Perdida em um canto qualquer, anulada de existência.
Seremos, agora, amigos, grandes amigos...

Absolutamente infiéis.

Abstrações de binóculo

E, como já queria supor, o medo se apresenta em sua face oculta, lua azul, redesenhando o que há de sonho ou realidade onírica. Era aguardada sua chegada, talvez não pra já, talvez não pra ontem, talvez não assim apresentado em suspensão, com tanta classe. Medo propondo brincadeira; não fará a brincadeira; já está a brincar, eu sei, eu vejo, não sinto porque não quero.Peculiaridade tragicômica controlar o sentir e não deter a razão. Nada culpo senão a mim. Entendo tudo, entendo tanto, mas pouco tem me servido tamanha compreensão se a dor é a mesma, implacável em sua duração centesimal. Recentemente adquiri um hábito bastante infeliz de prever a dor a ser doída, talvez apenas algo Fernando Pessoa: ser fingidor; "só as que ele não tem", as que ela não tem, ela não tem dor alguma, mas precisa um pouco delas. Talvez ela não sinta dor porque nada sente que seja real, e se seu coração for só fantoche da razão? E se ela for invenção de si mesma? Ora, todos somos nossas invenções, mas e se ela acreditava não ser e é? E se ela acreditava realmente existir? E o Medo? Ela também pensava que ele era bom, mas quem disse que não é? E os olhos profundos, infinitos? Mas porque o silêncio na despedida? Seria a certeza da volta ou da partida? Estaria ele levando o que de sua alma tinha deixado com ela ou apenas indo até ali pra voltar logo? Aliás, será que isso importa? Importa pra quem? Por que tentar entender quando os olhos são profundos? Acredito em Leminski, o olhar é longo quando não estamos pelo avesso, o olhar era eterno, eu sei, ela me contou, então era o lado direito, só podia ser. Ela acreditava nele porque sentia, não pensava.E se ela fosse ( o que de certo é) diferente de mim e fosse o coração incontrolável manipulador da mente? E se o Medo tivesse outro nome? E se ele estiver voltando, se só foi até ali resolver alguma coisinha em sua vida inteira e bastou virar as costas para ela se pôr a duvidar de tudo? Não culparia o Medo se ele nunca mais quisesse voltar diante de tamanha desconfiança, não culpo o Medo nunca. Também não culpo a ela. Nada culpo senão a mim.

Verborragia cotidiana em um tranquilo domingo caótico

Manhã de domingo. Lá fora, todo frio de São Paulo. Correr? Agora? Afundo ainda mais no edredon. Boa sorte. Viro pro lado, mas é tarde pra tentar dormir de novo, meu talento especial pra encontrar objetos perdidos (ou apenas guardados) é solicitado. Meu marido parte pra corrida, eu parto para um café, sem leite e sem açúcar, aliás, sem pão e sem graça, carboidrato só na terça, maldita dieta. Vou pra sala, ligo o computador, Graciliano Ramos. Eu já sei um pouco sobre ele e suas Vidas Secas, e também fascina-me a cachorrinha Baleia, mas meu aluno ainda não, então vamos lá.Uma página, uma única página, milhares de idéias e uma mísera página, mas quem disse que elas querem vir pro mundo? Ligo a TV, desligo a TV, ligo e desligo o som, passa-se um par de horas... nada. Pior que não saber o que escrever é não conseguir escrever o que se sabe. Resolvo dar um tempo e respeitar o timing das minhas idéias. Lavo a louça do café, arrumo a cama... concluo que o melhor é começar de novo. Tudo muda após um banho escaldante. Espelho, engordei, um único deslize nessa dieta insana... devia ter ido correr. Olho o shampoo da promoção, meu cabelo nunca foi muito amigo de produtos promocionais, mas há momentos em que é melhor aceitar o caro barato do que comprar a briga, só hoje, mais tarde resolvo. Vou ao espelho e vejo meus olhos ainda inchados pela noite longa de sono profundo e idéias oníricas e barulhentas, não importa, lentes de contato. Decido deixar de lado o moletom confortável e opto por algo menos macio, talvez o conforto da roupa contribua para que as idéias não saiam pro mundo. Encontro a roupa menos confortável, está amassada. Será que Levi Strauss passava suas roupas antes de ir pro caldeirão? Descubro que a roupa menos confortável que já não está mais amassada está larga, a dieta está funcionando. Meu cabelo... em meia hora verei os efeitos do shampoo promocional. Agora, outro café e Graciliano... mas meu marido chega com vídeo clipes bizarros, We’re the world e as vidas secas esperam de novo. Fim, voltemos ao realismo.
Volto ao computador, pego meu café, ligo o som, e começo de novo. Penso em tantas coisas ainda, que é difícil me concentrar na cachorra de Fabiano, só uma página, já escrevi dezenas sobre isso, por que uma está sendo tão difícil? E ainda tem a Alice, o Gato, o Chapeleiro... as idéias estavam prontas mas se perdiam na ponta dos dedos. Vamos almoçar, não é que todo mundo teve a mesma idéia? Prometo pra mim mesma nunca mais pisar em uma praça de alimentação de shopping center, mas ontem disse a mesma coisa e cá estamos nós: eu,meu grelhado e minha salada sem crouton procurando uma mesa. Mais um café e invento querer um vestido daqueles que só existem na minha imaginação e meu marido adora porque sabe que não encontrarei nesse mundo. Vou embora sem o vestido. Supermercado, a melhor opção possível vem da terra de seu George, abstraio de questões da política externa e sigo as compras. De volta pra casa e pra Graciliano, agora não tem mais jeito. Ouço apresentadores dominicais na TV, demais pra mim, mudo de lugar, respiro e consigo algo, desorganizado, mas ali está, amanhã ajeito. Missão quase cumprida. Agora só preciso esperar ansiosamente o fim do domingo, há tanto a ser feito, dito, escutado na segunda-feira. Espirro essa crônica pela ponta dos dedos e penso em dormir, amanhã ajeito essa também, penso em mais um punhado de coisas que não consigo silenciar e sei que vou dormir pensando, acordar pensando, sei que amanhã é outro dia ... e ainda estarei pensando.

Eram lá percalços seus...

Quinta-feira, 08 de março de 2007. Dia Internacional da Mulher. Data de comemorações extremamente discutíveis no que toca a tão clamada igualdade entre os sexos. Data também da visita do ilustríssimo presidente norte- americano George W. Bush a terras tupiniquins, ou tupinambás, ou qualquer outra denominação aleatória derivada do tronco tupi (1).
Mas o que me leva a escrever neste dia de tanta algazarra política, social, cultural, ambiental (vide Greenpeace no monumento do Ibirapuera) tem um fundo muito mais humano e muito menos humanitário, palavra da moda.
Egoísta e comodamente instalada em meu pequeno mundo paralelo, um tanto Exupéry, observo toda essa agitação, inconcebível para minha alma de poeta, e pego-me pensando no exímio talento do ser humano de culpar outros por seus percalços. Sim, eu também inflo a massa das vítimas em potencial. Hoje mesmo, ao demorar 80 minutos para chegar a universidade, presa no trânsito já sabidamente caótico da “megalópole frenética”(2) culpei o tal chefe de estado, e também o nosso e todos os outros por serem chefes de estado, culpei motoristas de viaturas policiais, culpei os que culpavam o presidente ianque e os que nem sabiam dele, culpei as mulheres desse tal dia internacional, culpei aquelas que queimaram soutiens e obrigavam-me hoje a não estar em casa cozinhando, mas no trânsito correndo atrás de meu lugar ao sol, horas mais tarde vim a saber por um amigo que mulheres grávida também tiveram culpa, culpei burgueses e flagelados, afinal, tive bastante tempo pra isso. Em dado momento, quando o trânsito andou e o vento me fez despertar de meu surto dêitico (aproveitemos São Paulo, abençoado lugar onde, com uma boa dose de sorte, ainda podemos andar de vidros abertos em 5 ou 6 vias rápidas) constatei que, sabendo da possibilidade de algum caos, eu mesma poderia hoje ter-me antecipado na saída assegurando minha pontualidade. Mas claro que ao justificar o atraso, larguei mão do “mea culpa” e culpei todos os supostos culpados e quantos não estariam nessa hora culpando a mim, de forma mais ou menos abrangente, por algum motivo?
Humanos: se sofremos por um amor que, por mais que tenhamos insistido, não nos quis, a culpa não é nossa que não demos paz nem pra nós mesmos , nem pra pobre criatura, mas sim do ser ingrato que nos feriu tão profundamente.
Uma queda profissional dificilmente é motivada por nossa própria incompetência ou descaso e, sim, por aquele chefe ou colega fascínora.
Exemplos comuns que há aos baldes em qualquer canto de nossa vida e existirão sempre, como se fosse uma reação inerente a espécie humana. Nós todos, continuaremos culpando muitos e sendo culpados por outros tantos por motivos muitas vezes desconhecidos pelos algozes mas que poderiam ser complicadíssimos para a vítima, não fosse ela uma pobre vítima.
Culpar segue sendo uma boa desculpa.

(1) referência aos ensinamentos do mestre Eduardo de Almeida Navarro. Em tempo: mestre, aqui, não é título, é admiração; ele é livre-docente.
(2)expressão encontrada em Leonardo Leon, poeta neo-beatnik, cuja literatura chegou a mim na adolescência pelas mão de Patrícia Tavares, hoje historiadora ou cientista social, não sei ao certo.