terça-feira, 8 de julho de 2008

Provocações pós- modernas

“Narcisismo: forma inédita de apatia
feita da sensação epidérmica ao mundo e, ao mesmo tempo,
de indiferença profunda em relação a ele.” ( G. Lipovetsky)


Quarta-feira, dezenove horas. Ela salva seus arquivos, repassa a agenda, desliga o computador, sai em direção ao elevador, uma parada no toalete, confere sua aparência no espelho: sim, estava bem, aquele modelo de saia cai sempre bem em seu corpo. Despede-se de algumas pessoas sem nome. Chegando à garagem, entra em seu carro, ajeita o espelho, mais uma olhada em sua imagem, liga o rádio e parte para o trânsito. Em meio a uma multidão de veículos, ela é uma notável anônima, como tantas outras vidas tão importantes que cruzam a sua na via expressa.
O celular toca, ela ativa o viva-voz, entende o risco de dirigir segurando o telefone, havia marcado o jantar com uma velha amiga, conheceram-se na faculdade, ambas com sólidas aspirações profissionais, porém também mulheres, bonitas, cultas, sensíveis, tornarem-se amigas, afinal, era dificílimo encontrar pessoas com tantas qualidades, deveriam ter jantado juntas na segunda, mas ela teve uma reunião, remarcaram para hoje, entretanto, agora é a velha amiga quem está presa em um projeto enorme. Não havia problema algum, marcariam para outro dia, próxima semana, sabia que aos fins de semana a velha amiga tinha os filhos, o casamento, ela ficaria torcendo para que tudo desse certo.
Seguir para casa. Teria de providenciar algo para jantar, avisara a empregada que não jantaria em casa. Ela ainda lembra que em um passado não muito distante, adorava chegar em casa após o trabalho e cozinhar para o marido, mas agora ele não estava mais lá, recebera uma proposta irrecusável de trabalho no exterior, ela não podia abrir mão de sua carreira promissora: ficou, ele partiu. Não faria sentido ambos distantes e sozinhos, veriam outras pessoas, até o divórcio, pensariam. Ela ainda gostava muito de culinária, mas era triste cozinhar para ninguém, até porque ela era uma profissional bem conceituada, bem remunerada, poderia admirar a culinária dos melhores restaurantes do mundo, não havia razão alguma para pensar em ficar com cheiro de cebola nas mãos para fazer o jantar para a família todos os dias. Aliás, a família implicaria filhos, filhos implicariam seu corpo deformado, gordo, cheio de marcas, depois nunca mais haveria privacidade, individualidade, a vida dela jamais seria só dela, teria de dividir amor, espaço, alegria. Não, ela era uma executiva de sucesso, não havia espaço para tais banalidades em sua vida.
Pára o carro diante do belo edifício, o carro é identificado, abre-se o portão. Há mais pessoas aguardando o elevador, ela diz boa noite: não os conhece, não a conhecem. Em seu confortável e silencioso apartamento, um banho demorado, após um dia produtivo de trabalho. Comida japonesa delivery, uma taça de vinho, um pouco de televisão,música, um bom livro, uma olhada na agenda do dia seguinte: absolutamente repleta de reuniões importantíssimas entre as 10 e as 19, o restante do tempo, preenchido por compromissos inventados e pintados como imprescindíveis, ainda sobrando no final da noite, quando as luzes do mundo começam a se apagar e as resoluções importantes não tem cabimento, tempo para uma profunda solidão infinita, plena de si mesma.

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